Liderança abaixo do radar
Há uns dez anos, participei de um evento fechado da firma na qual tinha recém-concluído o programa trainee. Uma empresa de consultoria com extensa experiência em análise de ambientes corporativos veio nos apresentar o compilado do seu conhecimento acumulado em anos. Consistia num triângulo de elementos que mais influenciavam a satisfação dos colaboradores: gostar dos colegas, confiar nos chefes e ver propósito no trabalho. Até aí, nenhuma novidade. O interessante aparece quando pensamos nos elementos que não são os mais importantes. Gostar do trabalho não é tão importante quanto ver propósito nele (conceito similar também é explorado no delicioso So Good They Can’t Ignore You [1], que rejeita o conselho genérico “siga sua paixão”). Assim como gostar dos chefes não é tão importante quanto confiar neles. Ou seja, não precisamos de chefes “amigos”, tampouco “carrascos”. Já tive chefes nos dois extremos e já experimentei adotar ambos os estilos. Vi que chefes muito bonzinhos só são menos tóxicos do que chefes mauzinhos. Aqueles equilibrados e que confiam de volta nos colaboradores contribuem para melhorar seu desempenho (fenômeno curioso discutido no artigo If Your Boss Thinks You’re Awesome, You Will Become More Awesome [2]).
Liderança é um assunto que está há anos nos holofotes, foi exaustivamente estudado e explicado. Seus fundamentos são bem estabelecidos. Meu objetivo aqui é comentar alguns aspectos da liderança que usualmente ficam fora do radar, baseados em vivência peculiar que tive como gestor e PCD.
Liderar é ir na frente
Em inglês há a expressão lead the way que deixa esta ideia muito clara. Se não conhecemos o caminho e precisamos que alguém nos guie, podemos pedir: lead the way. Ou seja, liderar pelo exemplo soa repetitivo porque liderar é dar o exemplo, é ir na frente, é fazer antes.
Em 2006, eu trabalhava numa firma que fabricava produtos da linha branca em Joinville. Estava acontecendo mais um dos lendários churrascos na casa de uns colegas de trabalho que foram também meus colegas de faculdade. O clima era de camaradagem, mas já não conseguia mais disfarçar os sintomas da minha doença degenerativa – tinha dificuldade para caminhar, me equilibrar e manusear espetos na churrasqueira.
Lá pelas tantas, as pessoas comendo e bebendo e a picanha estava passando do ponto. Todos muito entretidos nas suas conversas, era óbvio que caberia a mim salvar a carne. Levantei-me e cambaleei na direção da churrasqueira, andando com dificuldade sobre o chão de brita. Respirei fundo e levei a mão até a grelha. Talvez tenha sido o avançado da hora ou a afobação. Acabei esbarrando no objeto e derrubando a carne no fogo. Um desastre, falha crítica. Porém, num piscar de olhos, surgiram várias pessoas ao meu lado e salvaram a picanha. Senti vergonha, ainda não sabia como lidar com aquele tipo de situação. Por outro lado, um aprendizado importante me marcou para sempre e foi útil inúmeras vezes depois.
Em 2010 estava fazendo um treinamento corporativo em Londres. O tema do treinamento, pertinentemente, era formação de equipes. Tive a oportunidade de conviver com pessoas de dezenas de nacionalidades diferentes. Tínhamos atividades de manhã até de noite e o clima era de camaradagem, embora fossem poucos os momentos de folga. Na época, eu comecei a usar uma bengala, mais para sinalizar que tinha um problema de saúde do que para me ajudar a caminhar.
Numa das ocasiões relaxadas, num fim de tarde num parque, estávamos sentados ao redor de uma enorme caixa térmica recheada de refrescos etílicos. Apesar de não termos atividades formais marcadas para aquela noite, precisávamos estar na hora certa no ônibus que nos levaria de volta para o centro de treinamento. Quase todo mundo apreciando as bebidas e todos nos enrolando para recolher a caixa e ir até o ônibus. Estava na cara que caberia a mim fazer o papel de chato e arrastar os colegas em diferentes níveis de sobriedade até nosso transporte. Desta vez eu sabia exatamente como agir e não hesitei – pedi ajuda para me levantar, cambaleei até a caixa e comecei a puxá-la. Não deu tempo de arrastá-la nem sequer por um palmo, já surgiram inúmeras pessoas para carregá-la. Não derramei uma gota de suor!
Entretanto, há um detalhe que muda tudo. Em momento algum a ideia foi manipular meus colegas, usar de sua empatia para fazê-los agir de determinado jeito. Foi o contrário disso, eu realmente estava disposto a arrastar a caixa sozinho até o ônibus, e puxar os colegas um a um, se fosse necessário. O que fez a diferença foi o ímpeto de fazer a coisa que todos sabiam que era certa.
Menos glamour, mais suor
Em 2012, a firma bancária para a qual trabalhava lançou um projeto audacioso, integrar os sistemas de dezenas de países objetivando ganhos de escala. Eu fiquei encarregado de organizar as métricas de produção da América Latina. De começo, achei que o desafio seria padronizar nomes dos processos, o que deveria ser mensurado e analisado, etc. Mas não. Quem já geriu projetos em organizações que não são voltadas a projetos sabe que uma dificuldade é garantir a conclusão de tarefas por pessoas das quais não se é chefe hierárquico.
Além de eu não ser formalmente “chefe” dos indivíduos que seriam parte da equipe nos outros países, ainda havia a questão da distância, das culturas diferentes e, principalmente, um dos países havia acabado de perder a função de integrador da América Latina para nós no Brasil. Portanto, o clima era de ressentimento.
Com algumas ações foi possível finalizar esta etapa da integração e substituir o ressentimento por respeito e confiança. Vou listar quais foram elas, mas, para explicar de onde surgiram, vou abordar a mentalidade da qual elas emanaram. Afinal, olhando em retrospecto, minhas ações podem não ter sido as mais eficientes, porém atribuo o sucesso à mentalidade apropriada.
A mentalidade apareceu colocando-se lado a lado o conceito de “liderança servidora” de O Monge e o Executivo [3] (em inglês esta ideia fica explícita desde o título – The Servant) e o conceito de incentivos, tão estudado pelos economistas, que entendi quando me deparei com Freakonomics [4] (em especial as análises de o que leva um lutador de sumô a entregar uma luta ou por que alguns corretores vendem o próprio imóvel a um preço melhor do que o do cliente – os incentivos certos movem as pessoas).
Como, então, obter engajamento num clima de ressentimento e sem ser formalmente o “chefe” das pessoas nos outros países? Vesti o chapéu de diplomata e entendi que eu precisaria fornecer algum valor (em vez de só pedir) e conceber algo concreto que deixasse o “trabalharmos juntos” vantajoso para todos (sem os incentivos formais tais quais gratificações, avaliação de desempenho, etc.) Com isso em mente, as seguintes ações foram colocadas em prática:
Estabelecer proximidade – por se tratar de uma equipe distribuída em cinco países, havia uma necessidade fundamental de fazer com que todos sentissem como se eu estivesse próximo, muito próximo. Isso foi feito priorizando responder e-mails ou mensagens instantâneas destes países. Na hora. Obsessivamente. Para isso, tive que adaptar meus horários e, quando recebia algum questionamento que não poderia ser respondido imediatamente, informava que a mensagem foi lida e o prazo que seria necessário para um retorno. Tenho certeza de que essas pessoas nunca receberam respostas tão rápidas, mesmo de assuntos locais.
Levar prazos a sério – mais um aprendizado que trouxe de Joinville. Lá, nossa equipe desenvolvia tecnologia para refrigeradores fabricados nos EUA. Nossos chefes eram americanos e eu achava estranho que eles nunca nos cobravam, parecia que não se importavam. Só falávamos com eles quando ligávamos em datas preestabelecidas para reportar o andamento de um projeto. Não é que eles não se importavam, ao contrário, pelo tanto de recursos investidos no Brasil, é claro que queriam um retorno. O que eu havia interpretado como desinteresse era, na verdade, uma confiança inabalável na nossa equipe. E não foi nada que eu tenha feito, tive a sorte de herdar esta relação de confiança construída pelos brilhantes membros da equipe que me precederam. Nosso coordenador no Brasil contou que, no começo, o pessoal dos EUA ligava todo o dia perguntando como estavam os trabalhos. Depois de meses cumprindo prazos e metas à risca, a cobrança foi gradativamente diminuindo até chegar num ponto em que eles simplesmente aguardavam nosso contato. Trazendo isso para o desafio de 2012, eu já sabia da importância de cumprir prazos e fazer o que se promete para construir confiança. Tinha uma atenção especial em cumprir meus prazos, o que me deixava à vontade para ser rigoroso em exigir que outras pessoas também cumprissem seus prazos e metas.
Compartilhamento de informações – quando a consolidação de informações da América Latina era feita por outro país, fornecíamos dados do Brasil e não havia retorno. Não sabíamos para qual finalidade elas eram utilizadas. Isso gerava distanciamento e frustração. Quando começamos o projeto de integração, o destinatário final das informações era a matriz da firma na Inglaterra. Mas, sempre que as informações não eram confidenciais, eu enviava uma cópia do mesmo documento aos colegas nos países da América Latina. Desta maneira eles ficavam conhecendo até mesmo os processos nos quais eles tinham desempenho melhor do que o Brasil, o que não me ajudou a fazer amigos localmente, mas esta ação simples contribuiu enormemente para construir um senso de equipe na região.
Derrubar a excessiva glamourização da liderança foi uma das principais motivações que me levaram a escrever a ficção Atrás da Máscara Cintilante [5] na qual a capitã de uma organização paramilitar reúne pessoas com talentos e desvantagens extraordinárias para trabalhem juntas numa missão quase impossível. Ela é a pessoa que mais se dedica e mais se machuca. Se ela faz isso para proteger a equipe ou visando o sucesso da missão, não vou contar aqui porque seria spoiler.
Na história foi possível ilustrar a progressão descrita no Leadership Pipeline [6] – a capitã começa como contribuidora individual, reunindo os membros da equipe e procurando o que motiva cada um, depois coordena a equipe operacionalmente, mais tarde passa a negociar recursos com outra superintendente e, por fim, volta a coordenar a equipe para a missão final. Vale notar que nada teria acontecido se não fosse a etapa inicial de contribuição individual, na qual ela vai na frente e toma riscos sozinha.
A trama foi inspirada também no Modelo de Tuckman [7] de formação de equipe (forming-storming-norming-performing), no qual a equipe só atinge o desempenho máximo após passar por uma fase de conflitos. Não há nada glamouroso em conflitos, mas um bom líder vai facilitar a passagem por esta fase em vez de tentar evitá-la, pois a melhor fase só acontece depois de a equipe aprender a normatizar a solução desses.
O líder vai na frente, mas o propósito vai ainda antes
Conheci o conceito de Liderança Situacional [8] em 2009 durante a especialização. Segundo ele, não existe um estilo de liderança que seja o melhor sempre, o ideal é que o líder se adapte conforme o nível de maturidade dos colaboradores para determinada atividade. Assim, eu já sabia que teria de ser adaptável se quisesse me tornar um líder minimamente decente algum dia. Mas nenhum conhecimento teórico me prepararia para uma situação que ocorreu no começo de 2013, e marcou o início do fim da minha história corporativa.
O objetivo era fornecer uma ferramenta de produtividade da qual uma parte seria construída pela minha equipe e outra parte pelo pessoal de TI. Na reunião para estabelecer os requerimentos de cada envolvido, fomos eu e mais um colaborador, que colocaria as mãos na massa e efetivamente construiria a parte pela qual eu estaria responsável.
Entrei na sala de reunião cambaleando com minha bengala, curvado e olhando para o chão, não por timidez ou insegurança, mas para facilitar o equilíbrio e evitar outra queda – coisa que já era frequente. O colaborador que foi comigo entrou com a postura impecável, se vestia bem e falava com excelente articulação.
O pessoal de TI logo passou a tratá-lo como o gerente. E me ignoraram. Toda a argumentação era direcionada a ele. No entanto, seria contraproducente tentar mudar aquilo. Mostrar um organograma não teria a menor utilidade, dado aquele objetivo específico.
Segundo o diagrama da Liderança Situacional, um colaborador com vasto conhecimento da atividade e altamente motivado requer um estilo de liderança de delegação, que lhe permita bastante autonomia. Portanto, apenas relaxei e deixei a reunião seguir. O objetivo é mais importante que o organograma.
Situações similares ocorreram outras vezes nos meses subsequentes. Além disso, meu desempenho caía na medida em que minha condição física degenerava, até o momento em que a vida corporativa parou de fazer sentido. Liderar é ir na frente, estarmos preparados para ser a pessoa que mais sua e nunca perder o foco no propósito são aprendizados preciosos daquela época que trago para meus desafios pessoais atualmente.
REFERÊNCIAS
[1] NEWPORT, Calvin. So Good They Can’t Ignore You. Editora Piatkus, 2016.
[2] ZENGER, Jack; FOLKMAN, Joseph. If Your Boss Thinks You’re Awesome, You Will Become More Awesome. Harvard Business Review, 2015. Disponível em: https://hbr.org/2015/01/if-your-boss-thinks-youre-awesome-you-will-become-more-awesome. Acesso em 19 de jan. de 2022.
[3] HUNTER, James C. O monge e o executivo. Editora Sextante, 2010.
[4] DUBNER, Sthepen; LEVITT, Steven. Freakonomics: o lado oculto e inesperado de tudo que nos afeta. Editora Elsevier, 2007.
[5] TITO, Eduardo. Atrás da Máscara Cintilante: Uma Fábula de Liderança e Sobrevivência. Kindle, 2019. Disponível em: https://www.amazon.com.br/dp/B07Y7BDR5J. Acesso em 19 de jan. 2022.
[6] CHARAN, Ram; DROTTER, Stephen; NOEL, James. The leadership pipeline. Editora Jossey-Bass, 2º edição, 2010.
[7] TUCKMAN, B. W. Developmental sequence in small groups. Psychological bulletin, v. 63, n. 6, p. 384, 1965.
[8] HERSEY, Paul; BLANCHARD, Kenneth H. Psicologia para Administradores de Empresas, Epu, p.187, 1977.
Eduardo Tito – Engenheiro Mecânico pela UFSC, especialista em Marketing e MBA com foco em gestão da inovação. Atuou no desenvolvimento de tecnologias para refrigeradores, depois em operações no mercado financeiro, incluindo funções de controle, gestão de informações e gestão de projetos. Tem três livros de ficção em português e um deles também em inglês. Atualmente se dedica a testar terapias alternativas para sua doença degenerativa.